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este perfeito modelo de sua arte pretensiosa, meteu dentro dele o
homem, desfigurou-o, contorceu-o, fê-lo o tal ente absurdo e disparatado,
doente, fraco, raquítico; colocou-o no meio do Éden fantástico de sua
criação verdadeiro inferno de tolices e disse-lhe, invertendo com
blasfemo arremedo as palavras de Deus Criador:
"De nenhuma árvore da horta comendo comerás:
"Porém da árvore da ciência do bem e do mal dela só comerás se
quiseres viver."
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Almeida Garrett
Indigestão de ciência que não comutou seu mau estômago, presun-
ção e vaidade que dela se originaram tal foi o resultado daquele
preceito a que o homem não desobedeceu como ao outro: tal é o seu
estado habitual.
E quando as memórias da primeira existência lhe fazem nascer o
desejo de sair desta outra, lhe influem alguma aspiração de voltar à
natureza e a Deus, a sociedade, armada de suas barras de ferro, vem
sobre ele, e o prende, e o esmaga, e o contorce de novo, e o aperta no
ecúleo doloroso de suas formas,
Ou há-de morrer ou ficar monstruoso e aleijão.
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Poucos filhos do Adão social tinham tantas reminiscências da outra
pátria mais antiga, e tendiam tanto a aproximar-se do primitivo tipo que
saíra das mãos do Eterno, forcejavam tanto por sacudir de si o pesado
aperto das constrições sociais, e regenerar-se na santa liberdade da na-
tureza, como era o nosso Carlos.
Mas o melhor e o mais generoso. dos homens segundo a sociedade,
é ainda mais fraco, falso e acanhado.
Demais, cada tentativa nobre, cada aspiração elevada de sua alma
lhe tinha custado duros castigos, severas e injustas condenações desse
grande juiz hipócrita, mentiroso e venal... o mundo.
Carlos estava quase como os mais homens... ainda era bom e ver-
dadeiro no primeiro impulso de sua natureza excepcional; mas a reflexão
descia-o á vulgaridade da fraqueza. da hipocrisia, da mentira comum.
Dos melhores era, mas era homem,
Os seus pensamentos, as suas considerações em toda aquela noite,
em todo o dia que a seguira, na hora mesma em que ia encontrar-se com o
objecto que mais lhe prendia agora o espírito, senão é que também o
coração, todas participavam daquela flutuação inquieta e doentia de seu
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Viagens na Minha Terra
ser de homem social, em quem o tíbio reflexo do homem natural apenas
relampejava por acaso.
Dúvida, incerteza, vaidade, mentira, deslocavam e anulavam a bela
organização daquela alma.
Assim chegou ao pé de Joaninha que o esperava de braços abertos,
que o apertou neles, que o beijou sem nenhum falso recato de maliciosa
modéstia, e com o riso da alegria no coração e na boca lhe disse...
Ora pois, meu Carlos, sentemo-nos aqui bem juntos ao pé um do
outro e conversemos, que temos muito que falar. Dá cá a tua mão. Aqui
na minha... Está fria a tua mão hoje! E ontem tão quente estava!... Oh!
agora vai aquecendo... tanto, tanto... é demais! Terás tu febre?
Não tenho.
Não tens, não: a cara é de saúde. E como tu estás forte, grande,
um homem como eu sempre imaginei que um homem devia ser, como
sempre te via nos meus sonhos!... Que é estranho isto, Carlos: quando
sonhava contigo, não te via como tu daqui foste, magro, triste e doente:
via-te como vens agora, forte, são, alegre... Mas tu não estás alegre hoje,
como ontem; não estás... Que tens tu?
Nada, querida Joaninha, não tenho nada. Pensava...
Em que pensas tu? Dize-me.
Pensava na diferença dos nossos sonhos: que eu também sonhava
contigo.
Sonhavas, Carlos! E como sonhavas tu? Como me vias nos teus
sonhos?
Tudo pelo contrário do que tu. Via-te aquela Joaninha pequena,
desinquieta, travessa, correndo por essas terras, saltando essas valas,
trepando a essas árvores... aquela Joaninha com quem eu andava ao colo,
que trazia às cavaleiras, que me fazia ser tão doido e tão criança como
ela, apesar de eu ter quinze anos mais. Via-te alegre, cantando...
Sonhos de homem! Creiam neles! Eu que nunca mais ri nem
brinquei desde o dia que tu partiste... E ó que dia, Carlos!... E os que
vieram depois! Não houve nunca mais um só dia de alegria nesta casa.
Oh! deixa-me te dizer: Frei Dinis... Sabes que não gosto dele?
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Almeida Garrett
Não gostas?
Nada; tenho-lhe aversão. E Deus me perdoe! parece-me que é
injusta a minha antipatia.
Porquê?
Porque ele é teu amigo deveras. Um pai, Carlos, um pai não tem
maior ternura e desvelos por seu filho do que ele tem por ti.
Deus lhe perdoe!
Deus lhe perdoe a quem... e que lhe há-de perdoar? O amor que
te tem?
Não, mas...
Bem sei o que queres dizer: e tens razão!
Tenho razão!
Tens: o que ele bem precisa que Deus lhe perdoe é um grande
pecado.
Que dizes tu, Joana! E como sabes?
Sei, sei tudo.
Tu!
Eu. Sei que foi ele quem fez cegar minha avó... a nossa boa, a
nossa santa avó, Carlos!... Quem a cegou a força de lágrimas que lhe fez
chorar àqueles pobres olhos que, de puro cansados, se apagaram para
sempre... Minha rica avó! E por quê, meu Deus, por quê!
Por quê?
Por amor de ti, por escrúpulos que lhe meteu na cabeça de tu
seres mau cristão, inimigo de Deus, que te não podias salvar... tu, meu
Carlos! Vê que cegueira a do triste frade.
Bem triste!
Mas olha que o diz de boa fé e pelo muito amor que te tem... que
é um amor que eu não entendo: e o mesmo é com minha avó, que treme
diante dele. E mais ele estima-a, estou certa que dava a vida por ela... e
por nós todos... por mim não tanto, mas por ti e por ela dava decerto. Mas
o seu amor é dos que ralam, que apoquentam... quase que estou em dizer
que matam.
Matam, matam!
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Viagens na Minha Terra
Nossa avó é ele que a mata decerto. Sempre a meter-lhe medos,
sempre escrúpulos! O seu Deus dele é um Deus de terrores, de
vinganças, de castigos, e sem nenhuma misericórdia. Oh! que homem!
Para ele tudo é pecado, maldade... Não o posso ver.
Carlos respirava como desoprimido de um grande peso, ouvindo as
explicações da prima que bem claro lhe mostravam a sua perfeita igno-
rância dos fatais segredos da família.
E contigo disse ele já noutra voz mais desafogada contigo,
Joaninha, com se avém ele, como te trata?
Comigo não se mete, e rara vez me fala. Mas oh, se ele soubesse
que eu estava aqui contigo, santo Deus! O que ouviria a pobre da minha
avó! Inda bem que hoje não é sexta-feira, senão não vinha eu cá,
Por quê? Ainda vem todas as sextas-feiras?
Sempre o mesmo. Amanhã cá o temos por pecado, que é sexta-
feira.
Não te vejo então amanhã aqui?
Não decerto, aqui. Mas vamos, que a isso é que eu venho cá hoje,
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